O amante de Lady Chartterley
Sempre passava em frente daquele prédio, era localizado na praça
do mercado de farinha. De um lado ficava a farmácia do seu Genésio, homem bom, honesto,
prestativo, atendia a todos sem distinção, era uma referência em nossa cidade.
Do outro era o bar de dona Elba, senhora simpática, que recepcionava a todos com
um sorriso no rosto, sempre com seu jeito acolhedor como se fosse uma mãe de todos
os frequentadores do seu estabelecimento. Na frente no alto tinha um letreiro feito
em cimento com o nome majestoso - CINE TEATRO
IPIRÁ. Logo na entrada ficava a bilheteria e ao seu lado o acesso onde o seu Ambrósio
recebia os bilhetes; seguindo em frente, na sala de espera onde conjuntos de sofás
faziam parte da decoração. Alí sentávamos ansiosos até a liberação para entrarmos
na sala de exibição. Antes, porém, para passar o tempo, ficávamos olhando os cartazes
dos futuros lançamentos. Tinha também um balcão onde eram vendidos doces.
Naquela sala aconteciam também as paqueras, até a hora da exibição. E eu, como não
tinha dinheiro para comprar o ingresso ficava do lado de fora imaginando como seria
por dentro da sala de exibição. Naquela época, tinha apenas 17 anos, minha família
era bem humilde e não tínhamos condições de frequentar lugares como aquele, mas
sempre fui muito curioso, e por ter essa forte característica, fiquei maquinando
uma forma de como poderia realizar aquele sonho. Uma bela noite, como de costume,
fiquei novamente na frente vendo as pessoas entrarem com suas belas roupas, com
seus carros, com seus sonhos e eu apenas podia olhar... Foi então que uma
quinta feira o proprietário chegou da capital trazendo mais um lançamento cinematográfico
e justamente naquele dia o seu ajudante não compareceu, ficando ele totalmente atarefado
com suas atribuições, ai o acaso ajudou-me ... Ele olhou-me e perguntou:
_Rapaz, quer ganhar uns trocados?
Eu quase coloquei o coração pela boca e fui logo perguntando:
_Para fazer o que seu Ambrósio?
Ele olhou-me com a cara bem feia e respondeu:
_Em tudo que eu precisar é claro!
Não pensei duas vezes e respondi:
_Sim, eu quero, basta apenas eu pedir a autorização a minha avó.
Vou correndo falar com ela posso?
Ele então perguntou-me:
_Você não é neto de Dona Cremilda?
Eu me surpreendi, pois não sabia que ele me conhecia e a
minha avó! Apenas balancei a cabeça dizendo que sim, ele então me disse:
_Sua família toda é de gente boa, você com certeza não será diferente.
Ele então abriu o fundo do carro, um caravam amarelo, e me deu
um rolo do filme que seria o lançamento e disse:
_Já assistiu algum?
Respondi rapidamente:
_Não, mais morro de vontade de assistir.
_Se tudo der certo você vai me ajudar aqui no cinema.
Quase explodi de alegria, pois o meu sonho iria se realizar conhecer
um cinema por dentro. A primeira sala já conhecia, pois ficava horas a fio olhando
o movimento.
Seu Ambrósio foi à frente e na antessala acendeu as luzes. Pude
ver que tinha escadas laterais onde davam acesso à sala onde ficavam as
poltronas. No inicio temos a visão panorâmica de toda a sala, iniciando com poltronas
até a frente do palco, fica em uma descida, e fui seguindo ele e de cara pude notar
com a minha curiosidade que existiam poltronas que eram forradas com um tecido vermelho
e ai não aguentei e perguntei:
_Por que estas são forradas diferentes das outras?
Ele olhou-me com um mau
humor e respondeu:
_São poltronas cativas. As pessoas que alugam mensalmente e
só elas podem usar.
Entendeu?
_ Agora entendi. Respondi, porém no meu intimo fiquei
questionando o porquê daquela separação, ou melhor dizendo daquela
discriminação. Observei nas paredes laterais existiam desenhos psicodélicos e outros
de notas musicais em alto relevo dando um toque de arte naquela sala mágica. A tela
enorme ficava logo em frente, onde tinha escadas laterais para subirmos até o palco.
Na lateral esquerda, na parte central do salão, ficava a entrada dos sanitários
que eram ao ar livre e neste mesmo espaço,à esquerda ficava a sala das máquinas
onde eram exibidos os filmes. Chegando lá, pude perceber a magia diante de mim,
olhando pela janela que ficava em frente, tinha uma visão panorâmica de todo o salão com usas inúmeras poltronas.
È de lá que seu Ambrósio ficava projetando as imagens dos sonhos eternizados.
Ao terminar o meu serviço, ele me chamou e perguntou:
_ Quer continuar a ajudar-me
aqui?
E respondi com um sorriso:
_É verdade isso?
Foi ai que vi pela
primeira vez o sorriso daquele senhor. No mesmo dia ao chegar em casa e falei
com a minha avó e ela me disse:
_Filho, vá em frente, siga seus sonhos, pois a felicidade do
homem está em fazer o que gosta.
Nem dormir direito, acordei cedo, lavei a minha única
sandália de borracha, vesti a minha única calça jeans com uma camisa branca de
malha e fui à busca dos meus objetivos...
Chegando lá seu Ambrósio não tinha chegado ainda, fiquei a
esperar, mas fazia muito tempo em que me sentia tão bem. Ao chegar ele me disse
você vai trabalhar na lanchonete vendendo balas e pipocas durante os dias em
que tiver exibição, nos outros vamos dar a manutenção necessária nas maquinas e
na limpeza do cinema. Assim comecei a entrar no mundo das artes, e lá pude
perceber o quanto é importante a arte na nossa visão perante o mundo que
vivemos, e descobri o meu real papel na sociedade como cidadão e como habitante
neste planeta chamado terra. Logo na primeira noite em que fui trabalhar seu
Ambrósio me pediu que chegasse mais cedo, pois iríamos colocar o filme no ponto
para exibição; como fiquei maravilhado com a sensibilidade daquele senhor! E
como gostava do que fazia me pediu também que fosse dar uma geral na sala de
exibição, fechando todas as cadeiras para que os frequentadores pudessem passar
sem obstáculos, olhasse também a limpeza geral e os funcionamentos dos
ventiladores e sonorização. Alias até hoje não posso ouvir Júlio Iglesias e Ray
Conniff para não se lembrar daquelas noites... Fiquei curioso também em saber o
nome do filme que seria exibido, mas percebi que ele relutava um pouco a falar
sobre o mesmo. Foi então que ele me pediu que levasse para a avenida principal
o cartaz com a propaganda e aí tive uma imensa surpresa em saber que a atriz
principal era uma holandesa que fez um enorme sucesso com o filme erótico
chamado Emmanuelle.O nome dela era Sylvia Kristel e que agora estava
protagonizando outro filme:“O amante de Lady Chartterley”. Essa atriz tinha uma
sensualidade natural, um olhar super erótico, uma boca carnuda que ela maquiava
sempre com o batom na cor vermelha e contrastava com sua pela sempre muito
clara, era uma mulher que causava fortes emoções ao sexo oposto. Pude perceber
que ao acabar de colocar o cartaz, houve um alvoroço dos marmanjos em irem logo
comprar o ingresso para não perder a estreia. Seu Ambrósio logo ficou risonho,
pois sabia que o lucro seria certo. Como nós imaginávamos, foi realmente um
sucesso, tinha fila tanto para comprar os ingressos, como também em esperar a
próxima secção. Na ultima secção eu perguntei ao seu Ambrósio se poderia
assistir, ele logo respondeu que sim, mas só depois de fechar o balcão de
doces, e assim fiz. Quando entrei na sala de exibição, deparei-me com a cena
mais linda que até hoje vi... Aquela mulher linda, com uma pele rosada, um
olhar que implorava amor, seus lábios entre abertos exalavam apenas o cheiro da
atração correspondida, ela se entregando àquele homem másculo e viril, matando
incansavelmente seus desejos mais primitivos... Eu fiquei perplexo de tanta
sensualidade dividida e assim fui descendo não percebendo que um olhar me
fulminava... Procurei um local para sentar só achei quase em frente à tela, mas
mesmo assim sentei e fiquei extasiado de tanto romantismo, não percebendo que
alguém estava a minha espreita esperando apenas um deslize meu para dar o bote.
As luzes se acenderam e logo seu Ambrósio veio me chamando para deixarmos o
salão em ordem para o outro dia, e ai comecei dobrando as poltronas e nem
percebi que de longe aquele olhar mel me caçava, e fui continuando dobrando
cuidadosamente cada fila , quando chequei perto da última fileira senti um
cheiro delicioso, quando olhei só vi aqueles cabelos loiros cacheados saindo da
sala só deixando a fragrância no ar. Aumentei os passos mais não consegui ver
para aonde foi àquela pessoa, vi apenas que estava com vários amigos... Aqueles
cachos tinham uma cor pouco comum e o perfume deixado no ar também. Fui para
casa com o pensamento no filme e naquele perfume. Como era de costume todas as
quartas feiras tinha secção matutina, geralmente era filme de artes marciais e
fazia muito sucesso com os estudantes. Soube naquela época que muitos filavam
aulas para assistirem àqueles filmes e
justamente nesse primeiro dia eu fiquei na portaria, pois seu Ambrósio estava
na sala das maquinas preparando o filme, então quando eu comecei a recolher os
ingressos senti de imediato o cheiro daquele perfume e ao levantar o meu olhar
vi aquela garota linda, vindo em minha direção com um sorriso iluminado, ela me
olhou fixamente e eu desviei o olhar achando que não era para mim, entregou-me
o ingresso e jogou aqueles cachos para o lado e passou com suas inseparáveis
amigas. Eu fiquei totalmente nervoso, pois sempre fui muito tímido e sabia que
aquela garota jamais seria minha, era mais um sonho na minha cabeça que teimava
em sonhar... Eu tinha um amigo de infância que era meu confidente e fui
correndo contar a novidade, o apelido dele era Pavão, pois adorava uma
fotografia, quando via uma lente era só alegria. Era uma figura muito
importante em minha vida, sabia de tudo e um pouco mais, ele então me disse que
iria descobrir tudo sobre ela, antes da noite traria todas as informações. E
assim fez. Antes das seis chegava lá em
casa gritando que havia descoberto. O nome dela era Wanderleia e tinha mais uma
irmã chamada Martinha, o pai era louco pela jovem guarda, era de uma família
tradicional cheia da grana e não sabia se iria rolar algo entre nós. Minha avó
que ouvia toda a conversa, respondeu com sua costumeira sabedoria “se é para
ser vai ser, mas nunca abaixe sua cabeça por causa de ninguém, lembre-se
ninguém é melhor do que ninguém, apenas uns tiveram oportunidade outros não,
entendeu Doga?” Eu fiquei atordoado com tantas informações, só respondi calma
gente é só uma amiga... Fui trabalhar e aquela conversa não saia da cabeça, e
então peguei uma caneta e papel e comecei a rabiscar coisas que vinham em minha
mente, e pude perceber nitidamente que o meu oficio era escrever, é ali que
reside as minhas forças, são as palavras que me farão seguir em frente, elas
vão ser minhas companheiras eternas.
Antes de iniciar a secção noturna estava arrumando o balcão
dos doces e veio uma garota e me entregou um bilhete nele estava escrito:
“preciso te ver Wanderleia.” Fiquei boquiaberto com a atitude daquela garota,
olhei para a sua amiga e perguntei onde ela estava. Ela disse que estava me
esperando na praça da igreja dos crentes e
respondi que horas vai ser? Ela tá te esperando agora, então respondi:
agora não posso, só depois das 10, pois é quando termina a exibição, ai a amiga
respondeu vou ver o que vamos fazer... Naquele dia o cinema estava cheio tinha
uma turma da pesada que fazia seu Ambrósio perder seus últimos fios de cabelos,
eles faziam as maiores bagunças naquele salão, eram gudes jogadas no corredor,
era milho no ventilador que parecia uma metralhadora disparando tiros sem alvo
certo, era queima de peido alemão, que
ao acender o pavio exalava um cheiro horrível onde todos que estavam por perto
saiam correndo, ninguém conseguia suportar tal fedor. Assim a noite foi braba,
toda hora era um expulso, só via seu Ambrósio acender a lanterna na cara do
malandro e pegar pelo braço e expulsá-lo do cinema. Era uma gritaria só, e
todos participavam ativamente daquelas brincadeiras inocentes. Com isso não
pude ir ao encontro e a garota achou que eu estava a menosprezando, no outro dia passei pela sua
porta várias vezes e não a vi, na sua rua só morava grã-finos e eu pensava o
que você quer com essa garota? Mesmo sendo de família humilde eu sempre tive
muita hombridade, pois a todo o momento eu procurava o conhecimento do mundo em
minha volta e com isso me entregava aos estudos, não para mostrar a alguém, mais
para adquirir respeito por mim mesmo e com isso me presentear com um futuro
melhor. No meio da semana estava eu distraído lendo Machado de Assis quando
senti novamente aquele perfume, quando olhei era ela em minha frente, com
aqueles cachos lindos, macios, cheirosos e atraentes, fiquei vermelho na hora e
ela sorriu, com isso fiquei mais sem graça em perceber o seu jeito divertido de
me olhar. Lentamente levantei e fiquei a olhar aquela garota, e automaticamente
veio a pergunta: será que isso vai dar certo? Ela era de mundo totalmente
diferente, é como se fosse o desenho animado “A dama e o vagabundo”, uma linda
historia de amor, porém a realidade era outra... Mas nunca fui homem de fugir
dos desafios e não seria agora que iria fugir. Ela veio em minha direção e não
disse nada, apenas me beijou, com uma gula, com uma urgência, com uma
determinação pouco vista no sexo oposto. Entreguei-me como jamais acharia que
um dia iria isso acontecer, mas ai é que foi o meu erro, não deixei espaço para
mais nada, apenas o universo dela era o suficiente, fiquei a cada dia mais
deixado de lado, meus sonhos, meus projetos, minha vida. Com o passar do tempo
fui apresentado aos seus pais, que por sinal me receberam muito bem. Fui
acolhido com muita simpatia, porém o restante da família olhou-me de uma forma
diferente, não aprovando o nosso relacionamento. Eles aturavam a minha presença
por causa dela; nós íamos aos eventos sociais familiares e eles fingiam não me
enxergar... Isso começou a incomodar-me
e comecei a perceber coisas que antes
não ficavam guardadas... Tínhamos projetos futuros e aos poucos isso foi
ficando apenas em sonhos... A realidade me chegou sorrateiramente e em uma
noite em que estava totalmente
vulnerável eu percebi outro olhar e isso foi a gota d’água, pois sempre fui
verdadeiro com minhas emoções e não conseguia fingir que tudo estava bem, de um
lado os olhares preconceituosos dos seus familiares do outro o calor das nossas
noites, e agora o acaso me deixou assim com aquele olhar...
6 comentários:
Fabio Menezes disse no face:Bom demais! Adorei a história, me fez lembrar do cartaz feito de madeira que por sinal era a pior parte do trabalho, carregar peso!! kkk
Marconi Navarro disse no face: Muito bom Alberto Luiz Pires Silva. Isso nos faz reportar aos bons tempos, onde a sociedade ipiraense sabia valorizar os espaços culturais.
Waldeck disse no face: A História de Ipirá tem o seu cinema Paradiso!! Tem toda centralidade de importância cultural que envolveu nossa querida Ipirá por um período digno de ser lembrado.Um grande viva a nossa memória e ao seu texto..Por gentileza, Alberto Luiz Pires Silva, tem como disponibilizar uma foto do cinema..Procuro uma foto do cinema de Miro para guardar de de lembrança e para uso em apresentações pertinentes ao tema..abraços
Senhor das Palavras disse no face: Essa personagem "Wanderleia" com "aqueles cabelos loiros cacheados" que "na rua só morava grã-finos. ele lia Machado de Assis e que "o restante da família olhou-me de uma forma diferente, não aprovando o nosso relacionamento. Eles aturavam a minha presença por causa dela; nós íamos aos eventos sociais familiares e eles fingiam não me enxergar... Isso começou a incomodar-me e comecei a perceber coisas que antes não ficavam guardadas... Tínhamos projetos futuros e aos poucos isso foi ficando apenas em sonhos... A realidade me chegou sorrateiramente e em uma noite em que estava totalmente vulnerável eu percebi outro olhar e isso foi a gota d’água, pois sempre fui verdadeiro com minhas emoções e não conseguia fingir que tudo estava bem, de um lado os olhares preconceituosos dos seus familiares do outro o calor das nossas noites, e agora o acaso me deixou assim com aquele olhar... Grande Alberto Luiz Pires Silva isso é o que eu posso chamar de um texto altamente verossímil. Qualquer semelhança é mera coincidência!! Um grande abraço, amei a história!!! Salve, Salve.
Ulisses Dumas disse no face; Sinceramente, fiquei muito emocionado com o conto. Vivi muito pouco tempo a magia do cinema em ipirá, mas mesmo assim vc ganhou toda minha atençao com esse texto, pela história, detalhes, formas e principalmente pelos personagens que por sinal acredito que foram inspirados por alguem que conheço (rsrsrs) . Lindo texto... obrigado por essa maravilhosa viagem na nossa história de gloria em Ipira. Um forte abraço
Senhor das Palavras disse no face: “se é para ser vai ser, mas nunca abaixe sua cabeça por causa de ninguém, lembre-se ninguém é melhor do que ninguém, apenas uns tiveram oportunidade outros não...”
ALBERTO PIRES, no conto:" Cine Teatro Ipirá apresenta..."
Depois de ler esse conto, só a voz de Emílio Santiago, uma garrafa de vinho seco, algumas reflexões e meu silêncio podem justificar a certeza de que tem males que vem para o bem e que um sorriso num momento inapropriado é a prova de que eu sabia o que estava fazendo, mesmo que alguns nunca consiga compreender.
A vida tem dessas coisas, às vezes cronos resolve, e se ele não resolver nada mais resolverá.
O Senhor das Palavras
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