Cine Teatro Ipirá apresenta...

Author: Alberto Pires /

O amante de Lady Chartterley


Sempre passava em frente daquele prédio, era localizado na praça do mercado de farinha. De um lado ficava a farmácia do seu Genésio, homem bom, honesto, prestativo, atendia a todos sem distinção, era uma referência em nossa cidade. Do outro era o bar de dona Elba, senhora simpática, que recepcionava a todos com um sorriso no rosto, sempre com seu jeito acolhedor como se fosse uma mãe de todos os frequentadores do seu estabelecimento. Na frente no alto tinha um letreiro feito em cimento com o nome majestoso -  CINE TEATRO IPIRÁ. Logo na entrada ficava a bilheteria e ao seu lado o acesso onde o seu Ambrósio recebia os bilhetes; seguindo em frente, na sala de espera onde conjuntos de sofás faziam parte da decoração. Alí sentávamos ansiosos até a liberação para entrarmos na sala de exibição. Antes, porém, para passar o tempo, ficávamos olhando os cartazes dos futuros lançamentos. Tinha também um balcão onde eram vendidos doces. Naquela sala aconteciam também as paqueras, até a hora da exibição. E eu, como não tinha dinheiro para comprar o ingresso ficava do lado de fora imaginando como seria por dentro da sala de exibição. Naquela época, tinha apenas 17 anos, minha família era bem humilde e não tínhamos condições de frequentar lugares como aquele, mas sempre fui muito curioso, e por ter essa forte característica, fiquei maquinando uma forma de como poderia realizar aquele sonho. Uma bela noite, como de costume, fiquei novamente na frente vendo as pessoas entrarem com suas belas roupas, com seus carros, com seus sonhos e eu apenas podia olhar... Foi então que uma quinta feira o proprietário chegou da capital trazendo mais um lançamento cinematográfico e justamente naquele dia o seu ajudante não compareceu, ficando ele totalmente atarefado com suas atribuições, ai o acaso ajudou-me ... Ele olhou-me e perguntou:
_Rapaz, quer ganhar uns trocados?
Eu quase coloquei o coração pela boca e fui logo perguntando:
_Para fazer o que seu Ambrósio?
Ele olhou-me com a cara bem feia e respondeu:
_Em tudo que eu precisar é claro!
Não pensei duas vezes e respondi:
_Sim, eu quero, basta apenas eu pedir a autorização a minha avó. Vou correndo falar com ela posso?
Ele então  perguntou-me:
_Você não é neto de Dona Cremilda?
Eu me surpreendi, pois não sabia que ele me conhecia e a minha avó! Apenas balancei a cabeça dizendo que sim, ele então me disse:
_Sua família toda é de gente boa, você com certeza não será diferente.
Ele então abriu o fundo do carro, um caravam amarelo, e me deu um rolo do filme que seria o lançamento e disse:
_Já assistiu algum?
Respondi rapidamente:
_Não, mais morro de vontade de assistir.
_Se tudo der certo você vai me ajudar aqui no cinema.
Quase explodi de alegria, pois o meu sonho iria se realizar conhecer um cinema por dentro. A primeira sala já conhecia, pois ficava horas a fio olhando o movimento.
Seu Ambrósio foi à frente e na antessala acendeu as luzes. Pude ver que tinha escadas laterais onde davam acesso à sala onde ficavam as poltronas. No inicio temos a visão panorâmica de toda a sala, iniciando com poltronas até a frente do palco, fica em uma descida, e fui seguindo ele e de cara pude notar com a minha curiosidade que existiam poltronas que eram forradas com um tecido vermelho e ai não aguentei e perguntei:
_Por que estas são forradas diferentes das outras?
Ele olhou-me  com um mau humor e respondeu:
_São poltronas cativas. As pessoas que alugam mensalmente e só elas podem usar.
Entendeu?
_ Agora entendi. Respondi, porém no meu intimo fiquei questionando o porquê daquela separação, ou melhor dizendo daquela discriminação. Observei nas paredes laterais existiam desenhos psicodélicos e outros de notas musicais em alto relevo dando um toque de arte naquela sala mágica. A tela enorme ficava logo em frente, onde tinha escadas laterais para subirmos até o palco. Na lateral esquerda, na parte central do salão, ficava a entrada dos sanitários que eram ao ar livre e neste mesmo espaço,à esquerda ficava a sala das máquinas onde eram exibidos os filmes. Chegando lá, pude perceber a magia diante de mim, olhando pela janela que ficava em frente, tinha uma visão panorâmica  de todo o salão com usas inúmeras poltronas. È de lá que seu Ambrósio ficava projetando as imagens dos sonhos eternizados. Ao terminar o meu serviço, ele me chamou e perguntou:
_ Quer continuar a ajudar-me  aqui?
E respondi com um sorriso:
_É verdade isso?
 Foi ai que vi pela primeira vez o sorriso daquele senhor. No mesmo dia ao chegar em casa e falei com a minha avó e ela me disse:
_Filho, vá em frente, siga seus sonhos, pois a felicidade do homem está em fazer o que gosta.
Nem dormir direito, acordei cedo, lavei a minha única sandália de borracha, vesti a minha única calça jeans com uma camisa branca de malha e fui à busca dos meus objetivos...
Chegando lá seu Ambrósio não tinha chegado ainda, fiquei a esperar, mas fazia muito tempo em que me sentia tão bem. Ao chegar ele me disse você vai trabalhar na lanchonete vendendo balas e pipocas durante os dias em que tiver exibição, nos outros vamos dar a manutenção necessária nas maquinas e na limpeza do cinema. Assim comecei a entrar no mundo das artes, e lá pude perceber o quanto é importante a arte na nossa visão perante o mundo que vivemos, e descobri o meu real papel na sociedade como cidadão e como habitante neste planeta chamado terra. Logo na primeira noite em que fui trabalhar seu Ambrósio me pediu que chegasse mais cedo, pois iríamos colocar o filme no ponto para exibição; como fiquei maravilhado com a sensibilidade daquele senhor! E como gostava do que fazia me pediu também que fosse dar uma geral na sala de exibição, fechando todas as cadeiras para que os frequentadores pudessem passar sem obstáculos, olhasse também a limpeza geral e os funcionamentos dos ventiladores e sonorização. Alias até hoje não posso ouvir Júlio Iglesias e Ray Conniff para não se lembrar daquelas noites... Fiquei curioso também em saber o nome do filme que seria exibido, mas percebi que ele relutava um pouco a falar sobre o mesmo. Foi então que ele me pediu que levasse para a avenida principal o cartaz com a propaganda e aí tive uma imensa surpresa em saber que a atriz principal era uma holandesa que fez um enorme sucesso com o filme erótico chamado Emmanuelle.O nome dela era Sylvia Kristel e que agora estava protagonizando outro filme:“O amante de Lady Chartterley”. Essa atriz tinha uma sensualidade natural, um olhar super erótico, uma boca carnuda que ela maquiava sempre com o batom na cor vermelha e contrastava com sua pela sempre muito clara, era uma mulher que causava fortes emoções ao sexo oposto. Pude perceber que ao acabar de colocar o cartaz, houve um alvoroço dos marmanjos em irem logo comprar o ingresso para não perder a estreia. Seu Ambrósio logo ficou risonho, pois sabia que o lucro seria certo. Como nós imaginávamos, foi realmente um sucesso, tinha fila tanto para comprar os ingressos, como também em esperar a próxima secção. Na ultima secção eu perguntei ao seu Ambrósio se poderia assistir, ele logo respondeu que sim, mas só depois de fechar o balcão de doces, e assim fiz. Quando entrei na sala de exibição, deparei-me com a cena mais linda que até hoje vi... Aquela mulher linda, com uma pele rosada, um olhar que implorava amor, seus lábios entre abertos exalavam apenas o cheiro da atração correspondida, ela se entregando àquele homem másculo e viril, matando incansavelmente seus desejos mais primitivos... Eu fiquei perplexo de tanta sensualidade dividida e assim fui descendo não percebendo que um olhar me fulminava... Procurei um local para sentar só achei quase em frente à tela, mas mesmo assim sentei e fiquei extasiado de tanto romantismo, não percebendo que alguém estava a minha espreita esperando apenas um deslize meu para dar o bote. As luzes se acenderam e logo seu Ambrósio veio me chamando para deixarmos o salão em ordem para o outro dia, e ai comecei dobrando as poltronas e nem percebi que de longe aquele olhar mel me caçava, e fui continuando dobrando cuidadosamente cada fila , quando chequei perto da última fileira senti um cheiro delicioso, quando olhei só vi aqueles cabelos loiros cacheados saindo da sala só deixando a fragrância no ar. Aumentei os passos mais não consegui ver para aonde foi àquela pessoa, vi apenas que estava com vários amigos... Aqueles cachos tinham uma cor pouco comum e o perfume deixado no ar também. Fui para casa com o pensamento no filme e naquele perfume. Como era de costume todas as quartas feiras tinha secção matutina, geralmente era filme de artes marciais e fazia muito sucesso com os estudantes. Soube naquela época que muitos filavam aulas para assistirem àqueles filmes  e justamente nesse primeiro dia eu fiquei na portaria, pois seu Ambrósio estava na sala das maquinas preparando o filme, então quando eu comecei a recolher os ingressos senti de imediato o cheiro daquele perfume e ao levantar o meu olhar vi aquela garota linda, vindo em minha direção com um sorriso iluminado, ela me olhou fixamente e eu desviei o olhar achando que não era para mim, entregou-me o ingresso e jogou aqueles cachos para o lado e passou com suas inseparáveis amigas. Eu fiquei totalmente nervoso, pois sempre fui muito tímido e sabia que aquela garota jamais seria minha, era mais um sonho na minha cabeça que teimava em sonhar... Eu tinha um amigo de infância que era meu confidente e fui correndo contar a novidade, o apelido dele era Pavão, pois adorava uma fotografia, quando via uma lente era só alegria. Era uma figura muito importante em minha vida, sabia de tudo e um pouco mais, ele então me disse que iria descobrir tudo sobre ela, antes da noite traria todas as informações. E assim fez. Antes das seis  chegava lá em casa gritando que havia descoberto. O nome dela era Wanderleia e tinha mais uma irmã chamada Martinha, o pai era louco pela jovem guarda, era de uma família tradicional cheia da grana e não sabia se iria rolar algo entre nós. Minha avó que ouvia toda a conversa, respondeu com sua costumeira sabedoria “se é para ser vai ser, mas nunca abaixe sua cabeça por causa de ninguém, lembre-se ninguém é melhor do que ninguém, apenas uns tiveram oportunidade outros não, entendeu Doga?” Eu fiquei atordoado com tantas informações, só respondi calma gente é só uma amiga... Fui trabalhar e aquela conversa não saia da cabeça, e então peguei uma caneta e papel e comecei a rabiscar coisas que vinham em minha mente, e pude perceber nitidamente que o meu oficio era escrever, é ali que reside as minhas forças, são as palavras que me farão seguir em frente, elas vão ser minhas companheiras eternas.
Antes de iniciar a secção noturna estava arrumando o balcão dos doces e veio uma garota e me entregou um bilhete nele estava escrito: “preciso te ver Wanderleia.” Fiquei boquiaberto com a atitude daquela garota, olhei para a sua amiga e perguntei onde ela estava. Ela disse que estava me esperando na praça da igreja dos crentes e  respondi que horas vai ser? Ela tá te esperando agora, então respondi: agora não posso, só depois das 10, pois é quando termina a exibição, ai a amiga respondeu vou ver o que vamos fazer... Naquele dia o cinema estava cheio tinha uma turma da pesada que fazia seu Ambrósio perder seus últimos fios de cabelos, eles faziam as maiores bagunças naquele salão, eram gudes jogadas no corredor, era milho no ventilador que parecia uma metralhadora disparando tiros sem alvo certo, era queima  de peido alemão, que ao acender o pavio exalava um cheiro horrível onde todos que estavam por perto saiam correndo, ninguém conseguia suportar tal fedor. Assim a noite foi braba, toda hora era um expulso, só via seu Ambrósio acender a lanterna na cara do malandro e pegar pelo braço e expulsá-lo do cinema. Era uma gritaria só, e todos participavam ativamente daquelas brincadeiras inocentes. Com isso não pude ir ao encontro e a garota achou que eu estava  a menosprezando, no outro dia passei pela sua porta várias vezes e não a vi, na sua rua só morava grã-finos e eu pensava o que você quer com essa garota? Mesmo sendo de família humilde eu sempre tive muita hombridade, pois a todo o momento eu procurava o conhecimento do mundo em minha volta e com isso me entregava aos estudos, não para mostrar a alguém, mais para adquirir respeito por mim mesmo e com isso me presentear com um futuro melhor. No meio da semana estava eu distraído lendo Machado de Assis quando senti novamente aquele perfume, quando olhei era ela em minha frente, com aqueles cachos lindos, macios, cheirosos e atraentes, fiquei vermelho na hora e ela sorriu, com isso fiquei mais sem graça em perceber o seu jeito divertido de me olhar. Lentamente levantei e fiquei a olhar aquela garota, e automaticamente veio a pergunta: será que isso vai dar certo? Ela era de mundo totalmente diferente, é como se fosse o desenho animado “A dama e o vagabundo”, uma linda historia de amor, porém a realidade era outra... Mas nunca fui homem de fugir dos desafios e não seria agora que iria fugir. Ela veio em minha direção e não disse nada, apenas me beijou, com uma gula, com uma urgência, com uma determinação pouco vista no sexo oposto. Entreguei-me como jamais acharia que um dia iria isso acontecer, mas ai é que foi o meu erro, não deixei espaço para mais nada, apenas o universo dela era o suficiente, fiquei a cada dia mais deixado de lado, meus sonhos, meus projetos, minha vida. Com o passar do tempo fui apresentado aos seus pais, que por sinal me receberam muito bem. Fui acolhido com muita simpatia, porém o restante da família olhou-me de uma forma diferente, não aprovando o nosso relacionamento. Eles aturavam a minha presença por causa dela; nós íamos aos eventos sociais familiares e eles fingiam não me enxergar... Isso começou a  incomodar-me e comecei a perceber coisas que  antes não ficavam guardadas... Tínhamos projetos futuros e aos poucos isso foi ficando apenas em sonhos... A realidade me chegou sorrateiramente e em uma noite  em que estava totalmente vulnerável eu percebi outro olhar e isso foi a gota d’água, pois sempre fui verdadeiro com minhas emoções e não conseguia fingir que tudo estava bem, de um lado os olhares preconceituosos dos seus familiares do outro o calor das nossas noites, e agora o acaso me deixou assim com aquele olhar...          

6 comentários:

Alberto Pires disse...

Fabio Menezes disse no face:Bom demais! Adorei a história, me fez lembrar do cartaz feito de madeira que por sinal era a pior parte do trabalho, carregar peso!! kkk

Alberto Pires disse...

Marconi Navarro disse no face: Muito bom Alberto Luiz Pires Silva. Isso nos faz reportar aos bons tempos, onde a sociedade ipiraense sabia valorizar os espaços culturais.

Alberto Pires disse...

Waldeck disse no face: A História de Ipirá tem o seu cinema Paradiso!! Tem toda centralidade de importância cultural que envolveu nossa querida Ipirá por um período digno de ser lembrado.Um grande viva a nossa memória e ao seu texto..Por gentileza, Alberto Luiz Pires Silva, tem como disponibilizar uma foto do cinema..Procuro uma foto do cinema de Miro para guardar de de lembrança e para uso em apresentações pertinentes ao tema..abraços

Alberto Pires disse...

Senhor das Palavras disse no face: Essa personagem "Wanderleia" com "aqueles cabelos loiros cacheados" que "na rua só morava grã-finos. ele lia Machado de Assis e que "o restante da família olhou-me de uma forma diferente, não aprovando o nosso relacionamento. Eles aturavam a minha presença por causa dela; nós íamos aos eventos sociais familiares e eles fingiam não me enxergar... Isso começou a incomodar-me e comecei a perceber coisas que antes não ficavam guardadas... Tínhamos projetos futuros e aos poucos isso foi ficando apenas em sonhos... A realidade me chegou sorrateiramente e em uma noite em que estava totalmente vulnerável eu percebi outro olhar e isso foi a gota d’água, pois sempre fui verdadeiro com minhas emoções e não conseguia fingir que tudo estava bem, de um lado os olhares preconceituosos dos seus familiares do outro o calor das nossas noites, e agora o acaso me deixou assim com aquele olhar... Grande Alberto Luiz Pires Silva isso é o que eu posso chamar de um texto altamente verossímil. Qualquer semelhança é mera coincidência!! Um grande abraço, amei a história!!! Salve, Salve.

Alberto Pires disse...

Ulisses Dumas disse no face; Sinceramente, fiquei muito emocionado com o conto. Vivi muito pouco tempo a magia do cinema em ipirá, mas mesmo assim vc ganhou toda minha atençao com esse texto, pela história, detalhes, formas e principalmente pelos personagens que por sinal acredito que foram inspirados por alguem que conheço (rsrsrs) . Lindo texto... obrigado por essa maravilhosa viagem na nossa história de gloria em Ipira. Um forte abraço

Alberto Pires disse...

Senhor das Palavras disse no face: “se é para ser vai ser, mas nunca abaixe sua cabeça por causa de ninguém, lembre-se ninguém é melhor do que ninguém, apenas uns tiveram oportunidade outros não...”

ALBERTO PIRES, no conto:" Cine Teatro Ipirá apresenta..."

Depois de ler esse conto, só a voz de Emílio Santiago, uma garrafa de vinho seco, algumas reflexões e meu silêncio podem justificar a certeza de que tem males que vem para o bem e que um sorriso num momento inapropriado é a prova de que eu sabia o que estava fazendo, mesmo que alguns nunca consiga compreender.
A vida tem dessas coisas, às vezes cronos resolve, e se ele não resolver nada mais resolverá.

O Senhor das Palavras

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